terça-feira, 9 de outubro de 2012

"o movimento do voto em branco"

«A mim o que me assombra é que não se ouça um grito, um viva, um morra, uma palavra de ordem que expresse o que a gente quer, só este silêncio ameaçador que causa arrepios na espinha.» 

E se em dia de eleições todos os eleitores saíssem de suas casas para cumprir o seu direito de voto, não para votarem no p.d.d., nem no p.d.m. ou no p.d.e., mas sim para votarem em banco? É esta a história que José Saramago nos conta em Ensaio sobre a Lucidez

Num domingo de chuva e de eleições espera-se e desespera-se pela chegada dos eleitores à mesa de voto. Já para o final da tarde, quando a chuva dá um sinal de tréguas, «os eleitores que até então se tinham deixado ficar na tranquilidade dos seus lares» vão aparecendo nas respetivas assembleias eleitorais, «como rios que não conhecem outro caminho que não seja o mar», para exercerem o seu direito de voto. O que nada fazia prever era que os resultados finais iriam ser catastróficos para os três partidos! «Os votos válidos não chegavam a vinte e cinco por cento, distribuídos pelo partido da direita, treze por cento, pelo partido do meio, nove por cento, e pelo partido da esquerda, dois e meio por cento. Pouquíssimos os votos nulos, pouquíssimas as abstenções. Todos os outros, mais de setenta por cento da totalidade, estavam em branco.» 

Ora uma situação anormal como esta, que desafia todos os resultados previstos, merece a convocação imediata de novas eleições! Só que não se imaginava que com as novas eleições a percentagem de votos em branco iria aumentar ainda mais. E agora? 

Começam as inquirições e as perseguições a todos e a mais algum, até que o Estado e as respetivas autoridades decidem abandonar a cidade onde a votação em branco ocorreu e criar assim o caos. Entretanto, como o povo continua seguindo o seu dia a dia com normalidade, as respetivas autoridades dão início às investigações, com intuito de chegarem até a um culpado. E não é que descobrem que o culpado é a mulher que não cegou há uns quatro anos, quando toda a cidade tinha padecido desse mal! Entram então nesta parte da história alguns personagens do seu anterior livro, Ensaio sobre a Cegueira. Estes vêm conferir a culpabilidade do ato do voto em branco, pois este não poderia ter sido, de modo algum, involuntário. E aqui, o autor revela-nos de forma mordaz até onde os limites da democracia representativa conseguem chegar. 

«Ouviste alguma coisa, Três tiros, respondeu outro, mas havia também um cão aos uivos, Já se calou, deve ter sido o terceiro tiro, Ainda bem, detesto ouvir os cães a uivar.»

6 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

"A alegoria chega quando descrever a realidade já não nos serve."

Saramago

N. Martins disse...

Saudades de Saramago... :) Não sei como é que este livro, nos tempos que correm, não foi banido das prateleiras por ser "perigoso" nas ideias que passa. :)

Teté disse...

O meu marido leu, gostou e disse que aqui Saramago parecia zangado com a política e os políticos... ;)

Mas pronto, este não vou ler, pelas razões do costume... ;)

Beijocas!

nlivros disse...

Um dos melhores livros de Saramago e aquele onde ele nos lança uma espécie de prenunciação de algo que nos está a acontecer e que ele há muito vinha a alertar.

nlivros disse...

Queria-te fazer um convite que gostava que aceitasses. :)
Se possível, envia-me um mail: blog.nlivros@gmail.com

Tiago M. Franco disse...

Para mim este é um dos melhores livros de Saramago, melhor só o memorial, no entanto este ensaio é ainda mais atual.

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